“Hoje, mais um ciclo se encerra em minha vida. Dia da minha formatura, quase tudo está perfeito, mágico. Somente quase, por que não sei como será o dia de amanhã, não terei mais a obrigação de ir à faculdade, não terei que responder as perguntas dos professores. Estou por minha conta. Mas o que eu quero? São tantos os caminhos a serem trilhados, há tanta coisa para se fazer. Pensarei nisso amanhã, hoje, comemorarei o início de uma nova história. Aproveitarei ao máximo minha formatura”.
O dia seguinte chegou logo e as incertezas da véspera retornaram.Deitada em minha cama, na casa de meus pais, olhava para o teto tentando desesperadamente encontrar uma resposta única para todas as dúvidas. De repente, de tanto olhar para aquele teto branco, calado, ressurgiu uma antiga idéia.
Desde nova, não me conformava com muitas das situações injustas que aconteciam no mundo, tanta fome, miséria, tanta desigualdade que me partia o coração ao mesmo tempo em que me fazia sentir culpada por não conseguir fazer nada a respeito.Pudera, eu, apenas uma menina, uma criança vislumbrando mudar o mundo. Diziam-me que era sonhadora, que devia colocar os pés no chão, que tudo aquilo era obra divina.
Cresci, decidi tornar-me médica, pediatra, um pouco de tudo.Porém, isso não bastava, ser médica em um bairro de classe alta de São Paulo, cuidar só daqueles que já têm de tudo não era para mim, não era essa vida que queria desfrutar.
Agora, chegamos ao ponto de partida da minha história. Recém-formada, devia tomar uma séria decisão, virar mais uma média capitalista, focando todo o meu trabalho para atender a classe que pudesse pagar pelos meus serviços ou fazer a diferença, isto é, ajudar quem precisa de verdade e não tem recursos para pagar por todo o conforto?
Diante de tantos pensamentos e questionamentos tomei coragem e acreditei em tornar realidade o sonho que eu tinha há algum tempo. Assim, aos 25 anos de idade, decidi fazer aquilo em que acreditava. Despedi-me dos meus pais e amigos, derramei lágrimas de saudade, medo e insegurança. Mergulhei fundo para realizar meu projeto.Fiz contado com ONGs internacionais, informei-me de como conseguiria tornar fato aquele meu pensamento.Comprei minha passagem, arrumei minha grande mala, estava tudo pronto.De lenço branco na mão, em meio a soluços e frio na barriga, rumei direto para a África, para ser mais específica, para a Eritréia, um dos países mais subdesenvolvido do continente, localizado no leste da África.
Havia decidido fazer a diferença, tentar mudar todo um continente, toda uma história de conflitos, exploração, miséria e abandono, não me interessava o tempo que gastaria, estava disposta a tudo.Pouco sabia sobre a cultura do país para o qual estava indo, mas não importava, ao chegar lá, colocar-me-ia a par do que fosse necessário. Nem imaginava o que veria, não podia prever que seria um quadro tão terrível de exclusão. Mal sabia o que devia esperar.
O avião chegou. Respirei fundo e desembarquei na África do Sul, o mais rico pais do continente africano, já que não há aeroporto em Eritréia. Um guia me aguardava para levar-me ao destino planejado.
Ao chegar lá, não podia acreditar naquilo em que via, não parecia verdadeiro. Era impossível uma região ser tão abandonada, tão indescritivelmente pobre. Animais magros, sem força. Pessoas sentadas no chão como se tentassem descobrir uma boa razão para se mexerem e fazerem algo. Era algo tão triste. Olhei para o outro lado e vi uma mãe, ao lado de um bebezinho, que não devia ter mais de um ano, ela chorava desesperadamente, estava enterrando seu filhinho. Uma lágrima grossa escorreu de meus olhos e minha vontade foi correr para tentar confortá-la, entretanto, quando comecei a andar na direção daquela mãe, alguém me segurou pelo braço.
Era o guia, que acenava negativamente com a cabeça para mim, como se quisesse me fazer entender que o que eu queria fazer era errado, como se aquela cena fosse natural. Caminhei junto ao guia até o local onde se encontravam os outros médicos voluntários. Esses eram de todos os cantos do mundo, americanos, noruegueses, italianos, franceses, japoneses, um mais diferente do que o outro, mas todos pareciam muito unidos.
O local assemelhava-se a uma cabana, feita de madeira, com várias camas, beliches. O chão não era azulejado, as paredes não eram pintadas, no máximo, três cômodas em cada canto, enquanto o quarto canto estava ocupado com uma pilha de roupas. Era tudo muito rústico. Não fosse pela quantidade de pessoas lá dentro, de quinze a vinte médicos, descreveria como um lugar abandonado.
Como era tarde, quase sete horas da noite, fomos dormir, tinha que estar bem disposta no dia seguinte para ajudar aquele país. Coloquei meu pijama, deitei no beliche de baixo, ao lado de uma médica holandesa, fechei os olhos e lembrei da cena que havia visto assim que cheguei à Eritréia. Tentei afastar aquela imagem da minha mente, mas era impossível, aquilo já estava em mim, fazia parte da minha história. Falei para mim mesma que deveria ser forte, assim como a supervisora havia dito, não podia fraquejar agora, o mais difícil já havia feito, já tinha tomado coragem para me afastar dos pais, agora era só respirar fundo e fazer o que meu coração dissesse: melhorar a vida daquele país, para depois ir para outros.
No dia seguinte, levantamos às 5 horas da manhã, colocamos nossos uniformes, comemos alguma coisa que ainda tinha na sede da ONG e no dirigimos ao centro do país. Demoramos aproximadamente uma hora para chegar lá.A situação era pior do que a que descrevi assim que cheguei ao país, meu leitor, se isso é possível. Lá, o chão parecia mais seco, os animais e pessoas mais magros, já não pareciam ter muita fé na vida. Homens tentando cuidar de suas famílias, mães tentando zelar por seus filhos, crianças tentando ser crianças. Engoli o nó na garganta e segui os veteranos. Um deles pediu para que as mães trouxessem os pequenos, demos leite com vitaminas para todos eles, pegamos amostras de sangue para analisar. Logo depois foi a vez das mães e depois dos pais. Brinquei com alguns deles, esperava conseguir retirar-lhes um sorriso, o mais singelo que fosse, não tinha sido daquela vez. Não pudemos ficar muito tempo por lá, tínhamos muitos outros lugares para ir, muitas outras pessoas para ajudar e alimentar, medicar, cuidar. Nossa sorte foi que no dia anterior o carregamento de alimento, roupas e remédios havia chegado, dessa forma pudemos dar uma atenção melhor aos morados de lá.
E assim fizemos por vários dias, até que o caminhão que trazia tudo o que era necessário não chegou, não sabíamos o porque da demora, só sabíamos que não tínhamos como cuidar de todos com aquilo que havia no estoque da sede. Como escolheríamos quem tratar? Quem alimentar? Muitos estavam seriamente doentes, precisavam tomar medicações diariamente, caso contrário, poderia ser fatal. O que fazer? Isso já acontecera antes com esses médicos, mas o caminhão sempre chegara no último instante, agora não, a demora já era longa demais. Aquela população dependia de nós, dependia da ajuda dos outros, dependia de um caminhão que vinha de fora.
Saí da sede, gritei o mais alto que pude, precisava entender, precisava mudar aquilo, rezei com toda a fé que ainda tinha no meu coração. Se o Deus que sempre acreditei existisse ele iria me ajudar, ele iria me dar forças para continuar e faria o caminhão chegar o mais rápido possível! Atrás de mim veio uma das médicas, a Cindy, ela era americana, estava lá há pouco mais de um ano, tinha ido contar-me que, por um milagre, no momento em que os médicos já se preparavam para avisar a população de que eles estavam de mãos atadas, o primeiro caminhão chegou e, em seguida, os outros. Nem me preocupei em perguntar por que haviam demorado tanto, abracei-a e corremos para a sede, por dentro eu chorava como um bebê, agradeci por meu Deus ter atendido aquela súplica, aquele grito de desespero. As pessoas ficariam felizes. Quem sabe eu não veria um sorriso?
Fomos direto para todos os lugares, dar a medicação para os mais doentes e alimentos para todos. Tivemos que ser rápidos, pois, devido à demora do caminhão, estávamos muito atrasados, talvez não desse tempo para passar em tudo. Corremos, suamos, mas deu certo. Fomos dormir mais de uma da manhã, e acordamos no horário de sempre, às 5 da manhã. Bom, na verdade, leitor, eu acordei antes, tinha separado alguns livros que encontrei em uma sala lá da sede, que funcionava como biblioteca, e fiquei lendo para entender mais sobre a África e para tentar achar o motivo de tanta miséria, de tanta desigualdade, quem sabe assim, eu não conseguiria de vez mudar o rumo da história.
Ao voltar para a sede às oito da noite, tomei um banho, comi alguma coisa e fui para o quarto, deitei-me no beliche, virei para a parede de madeira escura e terminei de ler a história daquele povo. Aproveite para ler um livro que, em uma dessas visitas aos centros de pobreza do país, havia recebido de uma senhora muito velha, ela disse que não o soltava por nada, era equivalente a um talismã, disse estar entregando o livro para mim, pois tinha me visto brincando com as crianças e sentira que eu realmente estava lá para mudar o rumo da vida deles. Falou também para eu não me desgrudar do livro, pois ele era mágico, mas que eu devia descobrir como usá-lo sozinha.
Abri o livro, eram apenas gravuras, nada de especial, não tinha palavras mágicas. Era um conjunto de desenhos infantis, eram lindos, podia imaginar várias crianças com potes de tintas se divertindo em frente a uma folha de papel. Foi bom imaginar tudo isso. Entretanto, isso não me fizera parar de pensar em tudo o que eu tinha lido anteriormente. A África vivia bem, não tinha fronteiras, países, era tudo uma coisa só, era formada por tribos que lutavam pacificamente pelo território, não havia derramamento de sangue, nem miséria, fome ou desigualdade. Eles eram felizes. Você, meu leitor, meu amigo, deve estar se perguntando a mesma coisa que me perguntei ao começar a ler toda uma pilha de livros, por que essa situação tinha mudado? Como isso tinha acontecido, quando?
Os brancos entraram na África, essa é a resposta, vieram com seus interesses capitalistas, precisavam de mão-de-obra, precisavam de matéria-prima, precisavam investir capital em algum outro lugar em benefício próprio, claro. Invasão! Ninguém pediu licença aos africanos, eles simplesmente entraram, vasculharam, compraram, induziram os negros a abrir as portas de seu território. Manipularam, fizeram-nos de gato e sapato, abusaram, extrapolaram, tudo para suprir os próprios interesses, para encher os bolsos de dinheiro. Dinheiro à custa do sangue de inocentes e do sofrimento de quem não merecia!
1884. Conferência de Berlim, Partilha da África. Se já não tivesse bastado toda a intromissão no território alheio, os países europeus, que se julgavam poderosos e superiores aos outros, se reuniram em uma sala, em Berlim, para poder decidir com que parte do continente cada um ficaria! Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Inglaterra, Itália e Portugal, todos juntos em uma sala, decidindo de quem seria o quê. Esses países poderosos mal se importaram com os africanos, dividiram o território ao gosto deles, tal qual ao interesses deles. Tudo planejado, tudo comandado pelo bolso daqueles chefes de estado!
-Eu queria voltar no tempo e evitar essa maldita reunião!
Adormeci agarrada ao livro. Acordei assustada, estava atrasada para ir com o grupo distribuir a medicação, esfreguei os olhos, pulei da cama e não sabia onde estava. Minha roupa já não era a mesma com a qual tinha dormido, o livro continuava em meus braços. As pessoas pareciam sérias, estavam arrumadas. Evidentemente já não estava, na Eritréia, muito menos na África. Perguntei a um cidadão onde estava, fiquei boba com o que ouvi como resposta: estava em Berlim, era 1884. Havia voltado no tempo! Mas como?
Não sabia responder, só podia estar sonhando, belisquei-me várias vezes, porém, apenas consegui, com isso, deixar uma marca roxa em meu braço. Meu modo de falar também estava diferente, combinava, agora com o linguajar da época.
Se havia voltado no tempo, e se tinha ido parar bem na cidade e bem no ano em que a Partilha da África ocorreria, era só por uma única razão: devia tentar impedi-la.
De alguma forma tinha dinheiro no meu bolso, entrei em uma loja masculina e comprei um traje. Arranjei um lugar escondido para me trocar e disfarcei-me de homem. Fui direto para o tal palácio e me apresentei como um dos funcionários encarregados de servir os chefes. Encaminharam-me para uma sala, me explicaram o que teria que fazer e quando deveria entrar na sala, me deram uma bandeja com copos d’água e de vinho.
Todos haviam chegado. A reunião começara, era hora, tinha que entrara para servir-lhes a bebida. Não podia mostrar nervosismo, nem agir como mulher, pois com a sociedade machista da época, não me aceitariam lá, como de costume. Respirei fundo, coloquei o livro dentro do terno e fui, passo a passo, sem fazer barulho até a sala onde seria decidida a ruína de um povo inocente. Trinta e cinco passos foram necessários para que eu adentrasse a sala, distribuí os copos e as bebidas, posicionei-me em um dos cantos. De onde estava podia ver o mapa africano, réguas e compassos, estavam loucos discutindo sobre aquele continente, todos queriam usufruir o máximo que conseguissem. Não passavam de burgueses capitalistas sem coração!
Aquela cena fez o meu sangue subir, uma raiva descontrolada tomou conta de meu corpo, joguei a bandeja no chão e comecei a dizer que a reunião não passava de um erro, que eles não passavam de pessoas mesquinhas.Disse tudo o que aconteceria com o povo daquele continente que tentava distribuir entre uns oito países! Eu gritava furiosamente, subi na mesa e arranquei o mapa da mão de um dos chefes de estado, todos me olhavam como se eu fosse louca, já tinha percebido que tinha sido imprudente, estava enrascada, mas não importava, continuei a gritar, prossegui com o meu discurso e com os meus argumentos. Nada do que e dizia parecia estar fazendo com que eles mudassem de idéia, pelo contrário, estavam ficando irritados e chamaram os seguranças para me tiram de lá. Gritei o mais alto possível que aquilo era um erro, meus pulmões já estavam ficando sem ar, tinha gastado minha energias, comecei a chorar em cima da mesa, o chapéu que cobria meu cabelo comprido caíra, fazendo com que descobrissem que eu era mulher. Foi a gota d’água, dois seguranças levantaram-me pelos braços e, por ordem de um dos chefes, começaram a me levar para algum lugar muito escuro. Tentei me soltar, juntar minhas forças para voltar àquela sala e continuar gritando com aqueles velhos capitalistas!Porém, não tinha mais forças para lutar, nem para gritar. Tinha falhado. A África ia sofrer tudo outra vez e era minha a culpa. Mais lágrimas escorreram de meus olhos. Não tente se colocar no meu lugar agora, caro leitor, o caminho até a sala escura, para a qual os seguranças me levavam, pareceu-me longo demais, demorado demais para ser percorrido. Não tinha mais nada a fazer. Desistia.
Ao chegar esse ambiente escuro que mencionei, olhei para o rosto de um dos seguranças e percebi que ele olhava fixamente para mim. Olhei para o outro, e este estava preparando uma arma, uma espécie de escopeta ou fuzil, colocara a bala e apontou para mim. Era meu fim, iria perder minha vida por tentar salvar todo um povo que não merecia ter a vida sofrida. Fechei os olhos e desejei estar de volta na minha cama, lá na sede.
De repente, todos os sons sumiram, tudo se apagou. Uma mão tocou meu braço, abri os olhos, assustada. Era Cindy dizendo que eu estava atrasada. Respirei aliviada, não passara de um sonho. Nunca tinha voltado no tempo. Peguei o livro que a senhora havia me dado, e coloquei-o de lado. Enquanto me arrumava, percebi que algo brilhava em sua capa. Aproximei-me dele para enxergar melhor e pude ver, acredite se quiser, meu leitor amigo, que havia uma bala presa nele. Não acreditei no que via. Magia? Será que o futuro aos sonhos pertence?
Um novo dia começava para mim e para o povo pobre de Eritréia...
Ariane Grilo dos Santos
Giulia Carolina Cuoco Di Renzo
Dyego Yamaguishi
Guilherme Nishina Fortes
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