domingo, 19 de outubro de 2008

Quando não se pode mais esperar

Li a carta de Marcos num bar do beco das Cancelas, onde encontrei refúgio contra o rebuliço do centro do Rio e as discussões sobre o destino do país. Uma carta sem data, escrita numa clínica de Copacabana, aos solavancos e com uma caligrafia miúda e trêmula que revelava a dor de meu amigo.

“Não sei mais o que fazer, olhos todos os dias pela minha janela e não lembro onde estou, quem sou. Pelo menos, finjo esquecer. A janela parece me proteger, não sei do que exatamente, mas atrás dela, sinto-me seguro. Talvez não tão seguro.

Aqui é claro, as paredes são brancas e o assoalho, de madeira; a luz do sol entra pela minha janela e reflete no espelho em frente à minha cama. Chega a ser lindo para quem olha, alguns se encantam, porém não eu, para mim tudo está escuro, triste, sem sentido. Questiono-me, ainda, o por quê de continuar vivo. Lágrimas, diariamente, despejam de meus olhos murchos pelo tempo e pela dor. Estou cansado.

Terminarei esta carta por aqui, desculpe-me, Conrado, por não dar nenhuma boa notícia. Eu gostaria, mas não consigo. Sei que 10 anos se passaram, entretanto, sinto em minha pele como se fosse hoje. Espero que esteja melhor do que eu. Marcos”.

Pedi mais um copo de cerveja. Fazia duas horas que estava naquele bar. Lendo e relendo os relatos deprimentes de meu amigo. Queria ajudá-lo. Dez anos haviam se passado, estávamos em meados de 78, tudo estava diferente, não havia mais motivos para temer. Parecia que nada disso importava, Marco estava preso na ditadura, Precisava, de alguma forma, perceber que o mundo mudara e ele também.

Terminei minha cerveja, bati o copo na mesa e saí.Caminhando pela rua, com carta na mão, passei por vários dos lugares onde brincávamos quando crianças e, depois, adolescentes, onde nos reuníamos escondidos para debater ideais políticos e idéias para uma pátria justa e livre. Bons tempos aqueles. Ao fazer esse trajeto, um nó veio-me à garganta, um sentimento de culpa tomou conta do meu corpo, paralisou-me. Lembrei-me de tudo o que sofremos, todas as torturas, as situações humilhantes. Não era à toa que Marquinhos estava internado até hoje.

A culpa, sem dúvidas, era minha. Afinal eu era mais velho, devia tê-lo protegido, não devia ter deixado que se envolvesse. Ele era menor, mais fraco, óbvio que abusariam dele, seria mais fácil. Aqueles animais!! Como pude permitir que meu melhor amigo fosse tão cruelmente tratado? Culpado, culpado, culpado, eu era infinitamente culpado. Não podia ter tido medo, era seu herói, devi tê-lo salvado, tê-lo tirado daquele lugar escuro, úmido, cheio de ratos, daquele lugar em decomposição. Mas não consegui, quando tentei entrar no porão, fui pego. Amarraram-me a um tronco e me espancaram. Fiquei inconsciente.

Lembrei-me de tudo. Não contive os grunhidos de lamento e a fraqueza de meu corpo. Cai de joelhos no meio da calçada, soluçava. Parei, respirei fundo, tomei coragem, retomei minhas forças e corri o mais rápido que pude até a clínica na qual Marcos se encontrava.

Ao chegar lá, a enfermeira tentou falar comigo, mas nem ao menos prestei atenção. Estava atordoado. A única coisa que queria era vê-lo e logo.Entrei no quarto, Marcos estava deitado, olhando para a parede, chamei seu nome, porém, não respondeu. Caminhei rapidamente até seu lado, abracei-o, senti, assim, seu corpo frio. Temi pelo pior. Ao virá-lo em minha direção vi seu rosto pálido, seus olhos azuis vidrados, os lençóis sujos de sangue e seus pulsos cortados. Em sua mão havia um bilhete.
“Nossa amizade será eterna.Não pude mais suportar. Marcos”

Giulia Carolina Cuoco Di Renzo
nº12