
Era o ano de 1908. Lembro muito bem a chegada daqueles japoneses que iriam arruinar minha vida.
Ao chegar do Japão para o trabalho, uma simpática família despojada de pais veio morar conosco para cuidar dos nossos negócios. De início, tudo correu bem. Keiko, a mais nova dos três irmãos, e eu nos apegamos profundamente. Ela me contava coisas do seu país, da sua vida anterior à mudança, da trágica morte dos pais, da amizade com os irmãos. Todos os seus segredos eram confiados a mim e a recíproca era verdadeira. Era uma grande amizade!
Meu pai, um homem muito hospitaleiro, tratava muito bem Akemi. A jovem e bela japonesa também era gentilíssima e todos se davam bem. Com o tempo, porém, passei a perceber um certo carinho maior entre meu pai e Akemi. Yamada, o mais velho dos três irmãos, era mais fechado. As vezes, no jantar, nem se sentava à mesa e poucas vezes se rendia a grandes conversas. Era muito sorridente, porém igualmente calado.
O tempo foi se passando, e as famílias se fundiram. Não parecia mais haver diferenças entre os japoneses e nós, descendentes de franceses. O carinho e a dedicação com a qual tratávamos aquela família eram os mesmos que dispensávamos entre nós e com eles não era diferente, meus pais já haviam se tornado quase pais para eles. Pelo menos era no que eu e Keiko acreditávamos.
Porém, um dia, uma terrível verdade se abateu sobre nós. Estávamos em meu quarto brincando, quando ouvimos fortes gritos vindos da cozinha. Nos assustamos, e corremos para o corredor tentando averiguar o que poderia ter acontecido. Minha mãe esbravejava contra Akemi que, soluçante, parecia sem saber o que fazer.
Foi então que chegou meu pai, defendendo Akemi com unhas e dentes, acusando minha mãe das mais variadas alucinações. Keiko e eu ouvimos um forte estouro, seguido de gritos agonizantes de meu pai. Entramos correndo pela porta e vimos Akemi caída, toda ensangüentada, com meu pai lhe beijando a boca, já inerte. Foi então que entendemos: meu pai e Akemi se amavam! Aquela fusão familiar acabara sendo maior do que o esperado e minha mãe, enfurecida, matara a sua rival.
Logo em seguida, meu pai recolheu a arma derrubada no chão e atirou em seu próprio peito, em um ato de desespero romântico, de amor perdido.
Yamada entrou na cozinha logo em seguida. A cena o horrorizou mortalmente, e eu nunca mais vi um sorriso naquele rosto jovem. A polícia havia sido chamada pelos vizinhos e minha mãe foi presa e condenada, para morrer meses depois de desgosto.
Foi então que minha vida acabou: foi determinado pela justiça que, pela desgraça ocorrida a eles, Yamada e Keiko também teriam direito à minha herança. Eu teria então que viver com eles, ser criada por Yamada até atingir a maioridade e ter a independência necessária para prosseguir sozinha a minha vida. Que inferno minha vida se tornaria! Minha pequena amiga Keiko há muito já estava com uma grave doença, e pouco tempo depois partiu para junto de seus pais e irmãs, me deixando com seu amargurado Yamada!
Porém, Keiko havia me ensinado muitas coisas, segredos desconhecidos até por seus irmãos, passados diretamente a ela por uma tia-avó quando ainda morava no Japão. Entre eles um miraculoso chá que Keiko jurava dar poderes de controlar o tempo: com ele eu poderia viajar pelo passado ou futuro para poder ter conhecimento de fatos, tentando mudá-los ou não.
Após o funeral de Keiko, Yamada e eu voltamos à casa. Lembro-me bem do seu olhar de ódio e ressentimento para mim!
- Escuta! De hoje em diante não me dirijas mais a palavra. Tratava-te bem para não afligir a pobre Keiko, mas já que nada me resta, não desperdiçarei meus modos ao fruto dos destruidores da minha vida!
Como chorei naquela noite! E em todas as outras, por vários anos, até a tardia morte de Yamada. Ele nunca mais me dirigiu a palavra, nem o olhar. Eu era sua empregada, que fazia também serviços para fora para garantir algum sustento, ele já não trabalhava mais...
Hoje, passados vários anos daquela sucessão de infelicidade em minha vida, ainda guardo rancor pela raça nipônica. Se a família nunca tivesse colocado seus pés no Brasil, minha vida não teria sido arruinada!
Tomei então a decisão! Precisava testar se o tal chá era real ou apenas uma travessura de Keiko. Eu ainda tinha a receita, sabia que tinha! Vivia solitária, na mesma casa de toda a minha vida. O quarto de Keiko fora conservado desde a sua morte, com a receita do chá escondida em um canto.
Naquela noite tracei meu plano: iria retornar ao Kasato Maru, e fazer com que ele jamais chegasse à minha terra.
Preparei o chá. Uma aura mística emanava daquele vapor. O medo de tomá-lo tomava conta de mim, mas a determinação era mais forte.Tomei a largos goles. Senti-me estranha, com tonturas e enjôos.Sem nem perceber direito, meus pés me guiaram até minha cama.. e eu adormeci. Quando acordei, senti uma brisa diferente no rosto e ao abrir os olhos a surpresa, estava no maldito navio! Só faltava agora um plano, qualquer coisa que me ajudasse a sabotar a chegada do navio.
Após muito pensar, caminhando para perto da proa ouço uma conversa muito interessante:
-Motor quebra né?
Os japoneses já estavam tentando se habituar ao português! É verdade que ainda não eram muito fluentes, mas percebi no tom de voz o medo com relação ao funcionamento do motor.
Era isso! Se eu quebrasse o motor, eles provavelmente ficariam vagando nos mares, pois o rádio estava quebrado e seus outros meios de comunicação também. Corri para o porão. Os olhares me perseguiam, mas não me importava com isso. Só pensava em uma coisa, apenas uma.
O motor fazia um barulho infernal! Como eles suportavam viajar com aqueles estampidos e rangidos? Não me importava, iria quebrá-lo de qualquer forma.
Peguei a maior quantidade de ferramentas que minha mão suportou, e disparei a atacá-lo! Os barulhos foram diminuindo e por fim findaram.
Me dei por satisfeita, o trabalho estava feito! Aqueles malditos amarelos jamais chegariam à minha casa para desgraçar a minha família! Saí do porão mais leve, feliz!
Foi então que um japonês atarracado veio falar comigo:
-Moça! Bela moça! Obrigado né? Não sabemos como agradecer sua ajuda! Heroína misteriosa! Se não fosse sua ajuda jamais chegaríamos ao nosso destino, né? Obrigado Obrigado!
O chão se abriu aos meus pés, ao invés de quebrar o motor, eu o havia consertado! Não entendia mais nada, será que eu estava predestinada a sofrer?
Sem rumo, saí andando pelo navio com raiva de tudo, nada mais parecia ter sentido! Quando avistei a cidade me senti trêmula e desmaiei. Ao acordar, parecia que havia dormido uma eternidade e me encontrava na minha cama escura e fria, cheia de decepções, dúvidas e frustrações, que talvez eu nunca mais superasse.
Dandara
Fernanda
Fernando
Juliana
Um comentário:
Muito lindo *-*
parabéns!!
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