segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Assim caminha a humanidade

Assim caminha a humanidade




12h09min Washington, 20 de janeiro de 2009

Àquela hora, nada mais existia. Lágrimas de sangue escorreram pelos seus olhos. Olhos aqueles que jamais haviam derramado gotas, agora ardiam. Misturadas, as luzes daquele sombrio memorial faziam com que o negativo da sua vida fosse rodado, numa fina película, facilmente esquecida, superada pela dor. O Carrara frio o convidava. Já sobre seus joelhos fez a coisa mais impensável de sua existência. Orou. Não por ele, mas pela humanidade. Então, acabou por aceitar o convite. As cores se fundiram, e, sob aquele novo prisma, finalmente enxergou.


11h59min Washington, 20 de Janeiro de 2009


Sobre a cidade, esquadrilhas enfeitavam o céu com as cores da bandeira. As ruas, paradas. Um aspecto festivo tomara conta de seus habitantes, portadores de faixas cujos dizeres eram dos mais nacionalistas. Fogos azuis, vermelhos e brancos explodiam, sinalizando o início da posse.
Dentre as duzentas mil pessoas que se encontravam no National Mall, diante do Capitólio, cerca de quatro mil soldados cuidavam de assegurar uma corte de políticos internacionais. Agentes do FBI observavam cada um dos movimentos ao redor daquele picadilho.
Contudo, a dois quilômetros, uma fresta dava passagem a um cano. Com o indicador ciscando o gatilho e mira pronta, ele suava, como se uma tempestade de emoções o tivesse atacado, mesclando idéias absurdas e sentimentos. Respirou fundo, pensou em seu futuro, ou passado, a essa altura já não tinha mais tanta certeza, e deu uma última mirada. A faixa presidencial era transmitida. O ponto certeiro na cabeça do negro rapidamente desapareceu, ensurdecido pelo deslocar de ar de um projétil e, em seguida, pelos berros da multidão. O homem se levantou, tinha sido mais rápido do que pudera imaginar. Largando a arma para trás, correu em direção ao outro prédio.

05h38min Washington, 20 de Janeiro de 2009


Caído sobre o asfalto ainda quente, um homem de estatura normal e rosto particularmente belo, acordava. Levantou-se como se já soubesse o porquê de lá estar. Obstinado, pegou sua maleta de couro e seguiu o caminho que lhe fora traçado por seus superiores, e, como se usasse um cabresto, não ousou observar a estranha paisagem.
Retrocedera quase um século. Porém, a redução no tempo parecia não o ter afetado em nada, conforme imaginado. Era incrível como algo tão simples conseguira andar através da quarta dimensão com tanta facilidade. Mesmo o homem se surpreendera. Os novos humanos eram realmente inacreditáveis. A angulação em forma losangonal dos feixes de fóton havia feito a diferença. Desta vez, quando uma partícula entrava na área, não seguia mais o movimento dianteiro no espaço-tempo, como acontecia nas formas elípticas, mas seguia a direção inversa, graças à distorção de massa por parte dos lasers dentro da máquina, que fizeram com que o tempo transcorresse rapidamente para o passado.
Seguiu seu caminho pela gelada cidade. Um esboço de crepúsculo surgia, mas ele permanecia inalterado. Manteve seu curso. Parou na Avenida Lincoln 202. O obelisco, em silêncio, reinava na paisagem que já começava a se mostrar agitada. Algumas pessoas abriam as portas de suas casas e iam em direção ao parque. Sentado na mureta de um pequeno prédio de tijolos ingleses de quatro andares, e esperava a oportunidade certa para adentrar. Sua missão lhe dizia para subir até o último andar, apartamento 401.
Jamais havia se perguntado a razão de ter sido o escolhido. Afinal, havia mais mil soldados à disposição assim como ele, que nem fora o mais brilhante deles. Mas isso não importava naquele momento, estava apenas esperando a hora em que o dono do apartamento sairia para o desfile.
Sua missão era relativamente simples: entrar no apartamento, preparar seu rifle, matar o novo presidente na hora da troca de faixas e fugir. Estava tudo em suas mãos.
Para sua classe social, explicações não eram comuns. Todavia, nesta missão elas lhe foram dadas. Mesmo assim, ele não refletiu sobre, não era a sua função. Mas ele não podia esquecê-las, era impossível não se lembrar de seu superior, um novo humano absurdamente grande e de ações tão truculentas quanto seu físico, recitando os motivos e a importância daquele assassinato.
Em geral, mudanças no tempo não eram cogitadas. Suas características eram improváveis, mas uma mudança no Caos era certeira. Foram anos de cálculos e teorias na procura da mudança mais positiva para a humanidade.
No final do século XXI, o panorama humano era deprimente. Após a Terceira Grande Guerra Mundial, a civilização se tornou quase escassa. Todas as metrópoles do planeta foram evaporadas, áreas enormes se tornaram inabitáveis, 1,5 bilhão de pessoas morreram diretamente, seis bilhões morreram de fome, doenças ou falta de água potável, migrações nunca antes vistas acorreram e apenas a elite financeira conseguiu sobreviver.
A 3a GM teve como causadores as duas potências da época, EUA e China. Com a entrada do presidente Barack Obama no poder, os mercados foram fechados, fazendo a China perder milhões, causando um impasse internacional. O estopim foi o assassinato do embaixador americano em Pequim, virando o jogo contra os chineses. Ambas as nações se desintegraram, levando consigo seus aliados. Esta era ficou conhecida como a “Extinção”. Ela modificou toda a estrutura do planeta.
O clima chegou ao seu ápice de mudanças, tornando apenas os pólos habitáveis, extinguindo quase todas as espécies do planeta. Avanços tecnológicos foram freados, sendo retomados apenas duas décadas mais tarde, com a invenção da primeira Incubadora. A reprodução começou a ser totalmente assistida: os fetos eram gerados dentro dessa máquina, permitindo que seus crânios não tivessem o tamanho limitado, tornando-se, assim, maiores e mais inteligentes. A clonagem também se tornara comum, uma vez que a população humana se recusava a ter trabalhos rotulados como “indignos” pela sociedade, foram concebidos os clones, seres idênticos aos humanos, mas sem raciocínio lógico tão aguçado.
Novamente, criaram-se castas: os clones, verdadeiros trabalhadores da sociedade; os humanos, formadores das classes médias e, os novos humanos, a elite intelectual e ditadora. A camada inferior desta pirâmide era projetada para não pensar, apenas obedecer, sem jamais questionar ou rebelar-se. Para tal, não era estimulada, vivia em um mundo platônico e alienado. Era nesse mundo que aquele homem se encontrava.
O assassino acordou de seus pensamentos e se lembrou de seu objetivo, eliminar Barack Obama e restabelecer a ordem no mundo futuro. Tinha ordens de eliminar qualquer um que se mostrasse obstáculo ao ato. Concentrou-se.



10h10min Washington, 20 de Janeiro de 2009


Nas ruas, centenas de famílias se encaminhavam para a celebração. O fluxo cada vez maior parecia não ter fim. Nunca antes na história americana um presidente fora tão aclamado e, portanto, tão transformador do futuro. Sua morte era necessária.
O homem olhou seu relógio novamente, estava na hora. Levantou-se e caminhou em direção à porta. Ao mesmo tempo, um garoto começou a correr em sua direção. A sua frente, um cão sem coleira, em disparada. Compenetrado, não notou os dois, pelo menos até a hora em que foi arremessado ao chão. Levantando-se, rapidamente, nem ao menos olhou para o garoto, que se desculpava. A porta permanecia fechada. Ele suspirou, mas viu que algo estava errado. A hora marcada acabara de passar e o morador não havia saído. Relógios atômicos não atrasam, pensou ele, mesmo com a viagem no tempo, a sua marcação deveria permanecer a mais precisa. Algo saíra errado.
Tratou de observar os edifícios ao redor. O tempo passava e o morador continuava em seu apartamento. Decidiu não arriscar. Durante o período em que ficou na fachada, viu que o prédio do outro lado da rua, quase idêntico ao alvo, estava vazio. Todas as oito famílias haviam se retirado, pelo menos assim esperava. Não titubeou, mudou de calçada e entrou no edifício. Subiu até o quarto andar. Pelo corredor, foi escutando as paredes, o número 401 não apresentava qualquer sinal de vida. Com um chute, arrombou a fechadura e adentrou normalmente no recinto. A vista não era exatamente a mesma planejada, mas o assassinato ainda poderia ser realizado.





11h23min Washington, 20 de janeiro de 2009


A fresta da janela era pequena, por volta de uma polegada, mas o suficiente para passar o cano de sua Snipper futurística sem que pudesse ser observada de longe pelos seguranças do governo. O homem se aproximou da fenestra, observando a festa aos seus pés. Nada passava por sua cabeça, não havia pensado no que aconteceria após sua saída do apartamento 401 do 202 da Avenida Lincoln. Que morreria... bem, isso era certeza. Não existiam modos de voltar para o futuro e os agentes americanos cedo ou tarde o encontrariam. Mas não se importava, era o que lhe tinham mandado fazer, e era isso o que deveria fazer.
Em meia hora, o então presidente George Bush deveria subir ao palanque, juntamente com o seu substituto, essa era a hora de agir.
Sentou-se em uma cadeira e ficou observando a multidão.


11h53min Washington, 20 de janeiro de 2009


No momento em que os dois políticos apareceram, a multidão veio abaixo. Enquanto a bandeira era içada, ele sentiu que era hora de agir. Colocou a bala que deveria ser certeira dentro da cartucheira, preparou sua arma. Deu uma última olhada na redondeza para certificar-se, porém o inesperado aconteceu. No prédio em frente ao seu, a poucos metros, uma arma de longo alcance como a sua estava em posição e mirando para o centro das festividades. Desesperou-se. Nunca em sua vida se imaginou em situação tão crítica. Se fosse um agente, ele não teria tempo de disparar, seria morto antes. Se fosse outro assassino, não poderia deixar essa tarefa nas mãos de alguém que pudesse errar e tudo arruinar. A pressão se tornou insuportável. Ele mirou em Barack Obama e fechou os olhos.




12h01min Washington, 20 de janeiro de 2009


Os degraus da escadaria de madeira em espiral do prédio pareciam inexistentes. O homem saltava de um patamar para outro em uma velocidade surpreendente. Não acreditava que havia cometido tamanho erro. Ele errara. Havia fechado os olhos no momento mais crucial. Era um clone morto, disso já tinha certeza. Mas primeiro precisava fugir do homem do outro prédio, encurralá-lo e se vingar. Ele arruinara sua vida. Era seu momento de glória, coroado seria. Não lhe importava o rótulo de assassino, por dentro ele saberia que tinha feito uma das maiores mudanças da humanidade. Agora, essa idéia se desfizera. Em vez disso, na sua cabeça só existia a vingança.
Ao sair da construção, correu pelas ruas empunhando uma arma muito compacta. Segundos após, ouviu a batida de uma porta. Era ele. Ambos corriam em altíssima velocidade pelas ruas ainda desertas. O homem mirou para trás sem olhar e disparou. A resposta foi imediata, mas nenhuma bala os atingiu. Atravessando o gramado do parque, deram de cara com um enorme mausoléu.
O Lincoln Memorial é uma construção neoclássica inspirada no Templo de Zeus, em Atenas. Com mais de quinze metros de altura e cinqüenta de comprimento, é todo feito em mármore. Aberto 24 horas por dia, e com arcadas triunfais, era um convite para a entrada dos dois.
Parando bruscamente, o clone se arremessou ao chão, em meio a uma saraivada de tiros. Apontou a arma para aquele que havia arruinado sua missão e disparou, desta vez, certeiramente. A bala atravessou o peito do homem, que instantaneamente caiu, ficando impossibilitado de reagir.
Ele se levantou, chegou mais perto daquele monstro que o fizera perder a vida, com a arma engatilhada, e se deparou com a coisa mais assombrosa que poderia imaginar: no chão, estatelado sob seus pés, se encontrava ele mesmo.





12h07min Washington, 20 de janeiro de 2009


O sangue de seus pulmões agora encharcava sua boca. Caído ao chão, observava o homem que arruinara sua missão de pé, sobre ele. Mesmo não conseguindo distinguir sua face, pela sua expressão, notava o horror estampado. Aquele homem, por uma fração de segundo, tirara-lhe a oportunidade de cumprir com seu destino. Mas não era tão ruim, ao menos ele o tinha atingido também. Mesmo que não houvesse percebido, tinha sido marcado pela morte. Ele fizera tudo como lhe fora ordenado: o apartamento, a entrada sorrateira, os horários, tudo. Só lhe faltou apertar o gatilho um segundo antes. Já fora. Sua última imagem foi a de seu inimigo ajoelhando. Desse momento em diante, as cores desapareceram.


12h10min Washington, 20 de janeiro de 2009


Como se uma cortina branca cobrisse seus olhos, ele se deitou ao lado do morto, ou melhor, dele mesmo. Nada via, porém tudo sentia. Aquele homem que sempre fora tratado como um ser não pensante pelos seus superiores sentiu suas emoções correrem. A imagem dele mesmo morto era horrível. Sentiu enjôo. Sentiu a morte se aproximando. O tiro tinha lhe acertado as vísceras, era só questão de tempo para morrer. Como esforço final, debruçou-se cegamente. Mergulhou o dedo no sangue, e escreveu, sob os pés da grandiosa estátua, em linhas quase sobrepostas, o próprio epitáfio:

“Aos grandes homens, sangue é derramado
Sangue nosso, peões deste tabuleiro chamado destino.
Os grandes homens querem mudar o mundo
Mas o destino é imutável.
E pelas mãos deles morri.
Porém o difícil não é morrer,
Difícil é viver a vida e seu ofício.”
Victor Waller D. Sadalla

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